Muita bobagem tem sido dita e escrita sobre o caso da prisão do cineasta Roman Polanski. Eu tenho minha opinião sobre o assunto, mas não me considero apta o suficiente para escrever adequadamente a respeito. Por conta disso, calei.
Graças a Deus por Sérgio Augusto e sua lucidez, neste artigo (que reproduzo abaixo) do caderno Aliás do jornal O Estado de S. Paulo.
Caso Polanski: garras do passado
Após 32 anos longe dos EUA, cineasta pode ter de voltar para responder por crime de estupro
Sérgio Augusto
- Culpado ou inocente?
Não é essa a questão. A questão é se ele merece ser indultado por um delito cometido na década de 1970 ou extraditado para a Califórnia, para acertar contas com a Justiça. Em torno dessa e outra questão (por que prenderam o cineasta Roman Polanski naquelas circunstâncias, a caminho de um festival de cinema na Suíça?), armou-se uma polêmica, cuja repercussão, na semana passada, só não foi maior que a da disputa para sediar os Jogos Olímpicos de 2016.
De um lado, os que apoiam o cineasta, alguns incondicionalmente, até porque questionam se o que ele cometeu há 32 anos configura de fato um crime; do outro, os que, apesar de admirá-lo como artista ou tê-lo como amigo, não o consideram acima da lei e concordam com sua extradição, já que ele é, sem sombra de dúvida, um foragido da Justiça americana. Na boca do povo, a desaprovação é quase unânime: pelo menos 70% dos leitores do diário francês Le Figaro, o primeiro jornal a sondar a vontade popular, manifestaram-se radicalmente contra Polanski.
Esse porcentual só fez aumentar nos últimos dias, na Europa e nos Estados Unidos, com a indignação e o ressentimento tomando de assalto as seções de cartas dos jornais. Indignação com a impunidade do cineasta e a ofensiva "cínica, elitista e corporativista" em seu favor; ressentimento com os privilégios desfrutados pelas celebridades do show business e seu laxismo moral. A indignação é legítima; o ressentimento tem um incômodo travo populista e resvala, com frequência, para a inveja rancorosa, quando não para o racismo: já encontrei, no blogosfera, quem profetizasse a inocentação de Polanski "por ele ser judeu".
O comentarista do Washington Post Eugene Robinson abriu seu artigo de sexta-feira com esta pergunta: "Será que os cruzados da cultura conservadora que pintam Hollywood como uma cloaca moral afinal estavam certos?" Robinson acha que não, mas receia que a maciça defesa armada em torno do cineasta (mais de cem pesos pesados do cinema assinaram uma petição pedindo sua libertação imediata) contribua para agravar esse preconceito. "Hollywood está provando ser mesmo um clube provinciano, em descompasso com o resto do mundo", opinou o historiador de cinema David Thomson.
Aos fatos. Em 1977, no intervalo entre O Inquilino e Tess, Polanski embebedou (champanhe), drogou (quaalude) e, após checar o período de fertilidade de uma garota de 13 anos, chamada Samantha Geimer, sodomizou-a na casa do ator Jack Nicholson, em Mulholland Drive, Hollywood. Nicholson estava fora, mas a atriz Anjelica Huston, em processo de separação do ator e de passagem pela casa, surpreendeu o cineasta saindo pelado da jacuzzi. Anjelica sempre implicou com Polanski. "Ele é uma aberração (em inglês, freak)", desabafou para uma repórter da revista Vanity Fair (abril de 1997).
Por que Samantha não protestou, não repeliu Polanski, não gritou, apenas pediu para que ele a deixasse ir embora? Porque, conforme testemunhou no tribunal, "estava com medo". A leitura do depoimento completo, tornado público pelo site da revista eletrônica The Smoking Gun em março de 2003, nos permite acrescentar mais duas evidências para a falta de reação de Samantha: ela estava alcoolizada e drogada.
Duas semanas depois, Polanski foi indiciado pela polícia de Los Angeles. Contra ele, seis acusações. Livrou-se de cinco ao reconhecer a procedência de uma delas: fizera sexo com uma menor. Consensual ou não, sexo com menor é crime nos Estados Unidos, e por isso o cineasta passou 42 dias atrás das grades, para uma "avaliação psicológica". Temeroso de que o juiz escalado para o caso não cumprisse um acordo feito com seu advogado de defesa, e, ao invés de beneficiar-se de um sursis, tivesse de retornar ao xadrez, Polanski desistiu de esperar a sentença e fugiu para a Europa, tornando-se um conspícuo foragido da lei, caçado pela Interpol.
Dois anos depois, ainda não se arrependera do delito cometido. "Se eu tivesse matado alguém, a imprensa não se interessaria tanto pelo caso, certo?", comentou numa entrevista ao escritor Martin Amis. "Mas sexo com garotinhas tem um appeal enorme. Os juízes querem transar com garotinhas. Os jurados querem transar com garotinhas. Todo mundo quer transar com garotinhas."
Às ponderações iniciais da defesa - Samantha não foi violentada, não era virgem e dali a poucas semanas completaria 14 anos (nada feito: a idade limite para o liberou geral era 16 anos) - outras foram acrescentadas, ao longo dos anos: Polanski sofrera muitas tragédias na vida (perdeu a mãe num campo de concentração e a mulher, a atriz Sharon Tate, numa chacina), já quitou sua dívida com a sociedade (vivendo à tripa forra em Paris e num chalé de Gstaad); o juiz Laurence J. Rittenband (morto em 1993) agiu de má fé, capciosamente instruído pela promotoria, e não honrou seu acordo com o acusado; o Estado da Califórnia, às voltas com carências de toda ordem, não pode se dar o luxo de gastar o dinheiro do contribuinte com as custas de uma extradição e um processo irrelevantes.
Todas essas alegações desfilam por um documentário (Roman Polanski: Wanted and Desired) que Marina Zenovich dirigiu em 2008. Francamente favorável ao cineasta, talvez tenha feito mais para aliviar sua barra junto à opinião pública e, eventualmente, à Justiça americana do que as recentes invectivas do ex-ministro da Cultura da França Jack Lang ("Polanski está sendo vítima de um linchamento judiciário"), do atual ocupante daquele cargo, Frédéric Mitterand ("a prisão de Polanski mostrou o lado assustador da América"), do filósofo Bernard-Henri Lévy (que considerou o estupro "um erro de juventude", esquecendo-se de que Polanski tinha 43 anos em 1977) e da atriz Whoopi Goldberg, para quem o estupro não foi bem um "estupro-estupro", sem especificar que quantidade de sangue e roupa rasgada configuram um estupro-estupro. Ah, se a dupla de detetives da telessérie Law & Order: SVU ouvisse isso.
A história de Hollywod é pródiga em casos de estupro, estupro-estupro e sexo ilegal com ninfetas. O que talvez explique por que tanta gente de cinema ou tomou a defesa de Polanski ou pediu mesa. Gente que se sentiria hipócrita condenando o cineasta por algo que, em circunstâncias diversas, também fizeram nos anos loucos de 1960 e 1970, na avaliação pertinente do professor de cinema da Universidade da Califórnia em Los Angeles Jonathan Kuntz.
Em 1921 a starlet Virginia Rappe morreu, num hospital de São Francisco, em consequência de um estupro-estupro. Durante uma orgia movida a gim, o comediante Roscoe Fatty Arbuckle (no Brasil, Chico Boia), popularíssimo entre a garotada, a teria violentado com uma garrafa de Coca-Cola ou champanhe. Acabou inocentado, por falta de provas materiais conclusivas, mas o escândalo destruiu para sempre sua carreira.
A exemplo de Polanski, Chaplin tinha o seu lado Humbert-Humbert assaz saliente (e bota saliente nisso). Não podia ver uma Lolita taludinha, que também a elegia luz de sua vida e labareda de sua carne. Aos 29 anos envolveu-se com uma garota de 14 anos, Mildred Harris, que dele ficou grávida e deu à luz um monstro natimorto. Chaplin engravidaria outra menor, Lillita McMurray, de 16 anos, descuido que o levou aos tribunais e à pretoria. Lillita, conhecida na tela como Lita Grey, deu a Chaplin seus dois primeiros filhos. Ao cabo de três anos, divorciaram-se. Lita era chave de cadeia. Instruída pela mãe, fez o que pôde para depenar Chaplin. Conseguiu enchê-lo de cabelos brancos, interromper por um ano a produção do filme O Circo e embolsar mais de meio milhão de dólares, uma fortuna ainda mais vultosa em 1927.
Outro caso famoso do que o Código Penal americano chama de statutory rape (foi nesse crime que enquadraram Polanski) pegou pela proa o ator Errol Flynn. Em 1941, quando morava em Mulholland Drive (mera coincidência ou carma?), o galã número um da Warner foi atraído para um folguedo sexual por duas adolescentes, em dias e locais diferentes: Peggy Satterlee, al mare, no iate do ator; Betty Hansen, em terra firme. Ambas demoraram um ano para dar queixa à polícia, espessando as suspeitas, afinal confirmadas, de que haviam participado de um esquema de extorsão.
Samantha Geimer, a ninfeta de Polanski, tinha uma mãe negligente, irresponsável, provavelmente interessada em arrumar para ela uma carreira de atriz a qualquer preço, mas não há indícios de que tencionasse extorquir o cineasta. Coube a Samantha, aliás, fornecer o mais contundente argumento em favor da absolvição de Polanski: alguns anos atrás, ela veio a público confessar que já o perdoara, recomendando que tudo fosse esquecido e pedindo que a deixassem em paz. Mas persiste a dúvida: o perdão da vítima prescreve o crime?
Havia um segundo argumento favorável ao cineasta. No documentário de Zenovich, o promotor aposentado David Wells admite ter realmente instruído o juiz Rittenband sobre a melhor forma de julgar Polanski. Na noite da última quarta-feira, no entanto, Wells confessou "haver inventado aquela história", sem explicar bem por que se arriscou a uma punição por transgredir a ética forense. Zenovich ficou perplexa. E os advogados de Polanski, mais ainda.