Na doce ilusão de que algum dos meus poucos porém queridos leitores (vocês ainda estão aí, né?) tenha chegado aqui antes de chegar no mestre dos mestres, reproduzo a excelente crônica do Luis Fernando Verissimo (perdão pela redundância) publicada na Zero Hora de hoje, que poupou a mim o trabalho de descrever as mesmas opiniões e a vocês de lerem um texto inferior sobre o mesmo assunto :-)
Como se fosse a primeira vez
Chove desde que o mundo é mundo, mas a chuva sempre nos pega desprevenidos. Não falo na chuva catastrófica como a que tem nos flagelado, mas na chuva comum. Na chuva que deveria fazer parte das expectativas normais de qualquer um que não vive num deserto. Que não deveria exigir qualquer alteração no seu cotidiano fora a necessidade de usar guarda-chuva e o cuidado de evitar goteiras e poças. E, no entanto, todas as vezes que chove nossas vidas são transtornadas como se fosse a primeira vez. Meu Deus, o que é isso? Água caindo do céu?! Com chuva, todo mundo se confunde, como se não houvesse precedentes. Com chuva, o caos do trânsito vira um pavor, embora só seja o caos de sempre com água em cima.
O descaso que causa as tragédias quando a chuva é catastrófica é um corolário dessa surpresa sempre repetida. A imprevidência dos que constroem em áreas de risco ou a negligência dos que permitem a construção em áreas de risco vêm da mesma recusa de ver o óbvio. A chuva é uma obviedade, não é uma novidade. A chuva anômala, catastrófica, também, pois temos uma longa história de tragédias como as destes dias. Mas a reação é sempre de incredulidade, nunca se reconhece o óbvio.
O problema do Brasil não é que as coisas não tenham precedentes. Há precedentes para tudo o que nos aflige. O problema é que os precedentes não nos ensinam nada. Assim, continuaremos reclamando que os esgotos pluviais não dão conta das grandes chuvaradas e precisam ser refeitos, até a inundação regredir e não se falar mais nisso. Continuaremos protestando contra construções em áreas perigosas até os deslizamentos pararem e o tempo melhorar, e esquecermos. E cada tragédia, como cada dia de chuva, será sempre como se fosse a primeira vez.
Reparação
Alguém com tempo e curiosidade suficientes poderia calcular de quanto seria o montante se cada família de vítimas da imprevidência e da negligência dos governos – do esgoto não refeito, da encosta não adequadamente escorada, da estrada não duplicada ou não construída – responsabilizasse judicialmente Estados e União e exigisse reparação. Não precisaria nem ser as vítimas de todos os tempos, só de um ano bastaria. O custo seria maior do que o necessário para fazer as obras.
Me dou o ousado direito apenas de acrescentar um ponto. No caso de terrenos invadidos, creio que seria importante responsabilizar judicialmente também os cidadãos que constroem em áreas proibidas - e não apenas os governos que não conseguiram expulsá-los de tais áreas. Assim como multar o motorista ou pedestre que joga lixo na rua - e não apenas protestar o governo que não mantém os bueiros e os esgotos pluviais em ordem. Porque descumprir a lei e faltar com a civilidade e depois simplesmente culpar o governo pela "falta de fiscalização" ou "omissão" me parece meio século 20 demais - pra não dizer coisa pior.