O dia se espatifa: Reprodução necessária

domingo, 26 de agosto de 2007

Reprodução necessária

Como não sei se este link do site do Estadão seguirá disponível amanhã, reproduzo na íntegra o genial texto do idem Sérgio Augusto. Que, by the way, tem uma visão interessantíssima sobre a "Acadimia", que pode ser conhecida em alguns ensaios do seu Penas de Ofício.

A aula "Magda"
Sérgio Cabral troca nomes e datas ao falar de história para universitários. Na arte do tropeço, não está só

Sérgio Augusto

Alguém aí ainda se lembra da primeira estrofe de Wonderful World?

Não a daquele sentimental “mundo maravilhoso” do Louis Armstrong (“I see trees of green, red roses too...”), mas a do buliçoso hit de Sam Cooke, dez anos mais antigo, também conhecido como What a Wonderful World this Could Be. Ei-la: “Don't know much about history...” Ou seja, “Não sei muita coisa de história”.

Sempre a cantarolo quando alguém dá mostras de que a história não é bem o seu forte. Na quinta-feira, ao ler que, na véspera, o governador fluminense, Sérgio Cabral, cometera algumas mancadas sobre o passado brasileiro (sete pela contagem do repórter Cláudio Motta, de O Globo), durante uma aula magna na UniverCidade, desencavei o meu Sam Cooke predileto. A imprensa paulista ignorou a saia-justa do governador. A carioca deitou e rolou, mas sem perder a ternura, pois o cartaz do meu xará continua alto junto ao eleitorado.

Poucas coisas são mais divertidas do que os tropeções de uma autoridade. Os verbais têm um encanto todo especial. Lula vive nos entretendo com suas gafes históricas (Napoleão foi à China, Oswaldo Cruz criou o “remédio” contra a febre amarela); o fecundo asneirol de Bush já ganhou até sítios na internet; o finado Ronald Reagan virou motivo de chacota ao confundir a Colômbia e o Brasil com a Bolívia e ao comentar que “as árvores causam mais poluição do que os automóveis” e “o lixo anual de uma usina nuclear cabe todo debaixo de uma mesa de escritório”.

Pensando, não em autoridades e políticos, mas nos compositores de escolas de samba obrigados a versejar sobre tudo sem entender de quase nada, Stanislaw Ponte Preta lançou, em 1968, O Samba do Crioulo Doido, gozação imortal na mixórdia histórica sistematicamente cometida nos sambas-enredo, em cuja letra Chica da Silva obrigava a princesa Leopoldina a casar-se com Tiradentes, este “elegia-se” Pedro II e, aliado a Anchieta, proclamava a escravidão.

Sérgio Cabral não é crioulo, nem doido, e, ao contrário dos acima citados, não se enquadra naquela espécie para quem Millôr criou esta arrasadora sentença: “Chegou ao limite da própria ignorância e, não obstante, prosseguiu”. Mas que o governador precisa dar uns retoques nos seus conhecimentos de história, lá isso precisa, sim.

Em sua aula, duas vezes afirmou que Getúlio Vargas se suicidara com “um tiro na cabeça” (ou “na testa”, segundo a versão ainda mais insólita do repórter Alfredo Junqueira, de O Dia); antecipou a promulgação da Constituição de 1934 para 1932; disse que Winston Churchill costurou uma aliança da Grã-Bretanha com os EUA e a União Soviética, batizando-a de “Eixo Democrático”, quando foram apenas “Aliados” contra o “Eixo” nazi-fascista; escalou João Goulart como ministro do Trabalho de Juscelino Kubitschek (de JK ele foi vice, ministro, só de Getúlio).

Sua mais controversa afirmativa envolveu a renúncia de Jânio Quadros, atribuída a um “porre mais prolongado” e urdida com o propósito de incitar uma reação popular, que o traria de volta ao poder. O historiador Milton Teixeira abriu polêmica, ressaltando que Jânio ansiava por uma reação do Congresso, não do povo. De porre ou não, corvejando ou não um levante popular, o fato é que, diferentemente do que o governador do Rio disse, Jânio não governou 9 meses, mas 6 meses e 25 dias, erro que aos repórteres de O Globo e O Dia - e também ao historiador Milton Teixeira- escapou.

Embora formado em 1989, e na própria UniverCidade, o governador fluminense, até pelo que aprendeu com seus pais, não merece fazer parte das estatísticas sobre o claudicante repertório de conhecimentos dos brasileiros que entraram no ensino básico a partir da década de 70. Até hoje não nos recuperamos daquele capitis diminutio, daquele downgrade amplo, geral e irrestrito, daquele mergulho nas trevas.

Recentemente, ouvi uma repórter da BandNews chamar Ésquilo, o poeta trágico grego, de Esquilo (o roedor). Pelo tom jovem de sua voz, certamente não é a mesma que, há 24 anos, entrevistando Pedro Nava para uma TV paulista, quis saber por que o escritor escrevera com cê o círio de seu último livro, O Círio Perfeito. Com uma paciência que eu não teria, Nava respondeu: “Porque é com cê, mesmo, minha filha. Se meu livro tratasse do que, imagino, vai pela sua cabeça, se chamaria ‘O Turco Perfeito’.”

Ali pela metade dos anos 70, os jornais do Rio e São Paulo viviam tirando sarro da crassa ignorância dos vestibulandos e universitários em geral. Vítimas do sistema educativo destroçado pela ditadura militar, suas respostas às mais elementares perguntas sobre qualquer matéria, sobretudo história e literatura, eram uma pândega, que, na verdade, deveria provocar choro e depressão, não frouxos de riso. Passei anos colecionando o besteirol, sempre com uma preocupação em mente: nosso futuro está nas mãos dessa rafaméia mental.

Como ter respeito ou ser mandado por alguém que escrevia Clarisse d'Spec, Carlos Onde Andrade, e achava que Thaskowski (leia-se Tchaikowski) era escritor e Camões, um ficcionista brasileiro, que, além do mais, escrevera a Ilíada e a Odisséia, e ficara cego ao ter seus olhos queimados numa viagem à Terra do Fogo?

Samba é pouco. Precisaríamos de uma rapsódia, de uma sinfonia, de uma ópera: não do crioulo doido, mas do crioulo e do branco ignorantões.

Você sabia que a Semana de Arte Moderna aconteceu em 1964? E que Os Lusíadas descrevem a infância de seu autor, a Primeira Missa no Brasil, a vida de um português que se apaixonou por uma índia, a história de Luís XV e as atrocidades fascistas? E que Dante, além de ter escrito D. Quixote, Os Dez Mandamentos e mais nove clássicos da literatura mundial, era uma deusa de Roma? E que JK foi um presidente chinês? E que os presidentes da República aqui são eleitos pelo papa e um Conselho de Ministros?

Fiquei sabendo disso tudo por meio das provas de nossas melhores escolas de primeiro e segundo grau.

Getúlio matar-se com um tiro na cabeça é de somenos. Há 30 anos, um aluno de boa família resumiu assim a passagem de Getúlio pelo Catete: “Ele teve dois períodos bem distintos: uma fase dura e uma fase mole; e construiu a Vacina Siderúrgica”. Outro expressou sua admiração por Pedro Álvares Cabral com o seguinte argumento: “Quando ele descobriu o Brasil foi uma coisa muito inesperável que até hoje ele próprio nem sabe como é que foi”.

Em dezembro de 1976, uma repórter do Jornal do Brasil perguntou a um grupo de estudantes adolescentes o que da História do Brasil ficara em suas memórias, após tantos anos de estudos. “Pouca coisa, apesar de eu ter fassilidade (sic) para memorizar”, respondeu J.O., 15 anos. “Não ficou nada porque decoreba a gente esquece. História é matéria pra gente dar uma lida rápida, colar e esquecer. Não tem sentido, não serve pra nada”, respondeu F.B., 16 anos.

“Só não serve pra você, cara-pálida”, deveria ter replicado a repórter, arrematando seu comentário com esta sábia lição de George Santayana: “Quem ignora o passado está condenado a repeti-lo”.

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