O dia se espatifa: janeiro 2011

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Do Foursquare e da minha incoerência coerente

Quando entrei para o maravilhoso mundo das discussões políticas, eu tinha um posicionamento muito claro. Eu era de esquerda. E prezava pela coerência. Aos 14, 15 anos, chamar alguém de "incoerente" tinha como objetivo o mesmo tipo de ataque que chamá-lo de "infantil". Em retrospecto, percebo que eu nem era tão de esquerda assim. Só era antidireita - o que sigo sendo até hoje, explicando meu voto no Serra e não no Lula em 2002 e na Dilma em 2010 (interprete como quiser).
Vista daqui, aquela tal "coerência" de que tanto me orgulhei até 1994 (quando briguei feio com meu pai por votar no FHC mesmo ELE ESTANDO ALIADO AO PFL!!!!), na verdade, beirava a estupidez. E ao dizer que beirava, estou sendo generosa comigo mesma. Porque fincar pé numa ideia mesmo depois de ela ter sido provada equivocada pela vida apenas para não dizer "eu estava errada" é de uma burrice extrema.
A minha mais recente - e divertida - atitude incoerente foi ter abraçado animadamente o Foursquare, que eu já havia refutado peremptoriamente em outras ocasiões, criticando o excesso de "exposição" das pessoas. A versão mais forte para a mudança de opinião deve ser o fato de que meu novo celular 3G facilitou o uso da coisica. E eu tô me divertindo horrores podendo listar os lugares bacanas a que vou e para dividir impressões e dicas com os amigos reais e virtuais. Foi uma mudança de atitude rápida e intensa. Em menos de um mês, ganhei quatro badges.

Acredito muito nas minhas crenças. O suficiente para poder trocá-las quando considerar a troca coerente.


Este post foi inspirado pelo Alessandro Dreyer e pela Barbara Nickel que bem flagrou o meu recuo. Mas deixo uma ressalva: sigo achando um absurdo fazer check-in em endereços particulares, da própria casa ou da casa de amigos. Tudo na vida tem limites.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Quem eu quis ser um dia (mas logo desisti)

Durante os primeiros dias do ano letivo da segunda série do então primário, eu tive um ídolo. Era a Ana Maria, colega que sentava ao meu lado na sala de aula. Começava pelo nome. Ana Maria era um nome assim, básico, minimalista, algo que, mesmo inconscientemente, eu já achava muito chique. Os longos cabelos crespos dela estavam sempre perfeitamente bem postos, sem um fio fora do lugar, com cachos definidos e de um castanho claro brilhante. Tinha também o tom de voz da Ana Maria, sempre suave, sempre monocórdico - um luxo, acreditava eu, cria de família mezzo italiana, mezzo alemã.

Nas aulas de educação artística, a Ana Maria tinha um jeito impressionante de organizar o material em cima da carteira (era São Paulo, onde a classe gaúcha se chamava carteira, e a sala de aula, classe). Cada lápis de cor que escolhia usar era cuidadosamente retirado da caixa e, antes de ser substituído por outro, meticulosamente devolvido ao lugar de origem. Todos sempre perfeitamente apontados. Sempre arrumados na ordem em que vinham de fábrica.

Nos cadernos, cada linha que era pulada ganhava um desenhinho diferente (de uma flor, um coração, uma joaninha...). Sempre feito com o cuidado e a paciência relatados acima. E cada frase que ganhava um ponto final recebia também uma daquelas alisadinhas do papel que todos os fãs de papelaria costumamos dar nas primeiras palavras que imprimimos numa folha nova. Só que ela fazia isso o tempo todo. Além de tudo, a Ana Maria não caminhava, mas flutuava. Na educação física, fazia todas as atividades com absoluta indiferença. E não transpirava. Nem ficava ofegante.

Desencavei esse monte de informações dos meus arquivos mortos mentais hoje depois de ver entrar no ônibus em que eu estava uma moça com um olhar perdido, distante e blasé - igualzinho àquele que eu tanto admirei na Ana Maria naqueles primeiros dias de aula de 1982. Quase vinte e nove anos depois, passei a tarde tentando desvendar o porquê daquele fascínio. Não consegui. Só consegui lembrar de todos os detalhes sobre ela que tentei imitar: os cabelos bem ajeitados (que despenteavam à primeira brisa), os gestos delicados (que faziam com que eu demorasse demais para fazer tudo, e meus pensamentos acabavam sempre atropelando as minhas mãos), a voz baixa e monocórdica (quem me conhece deve imaginar a tortura que foi, ainda mais aos oito anos), os lápis de cor arrumados durante o desenho e não apenas depois (o que fazer com a criatividade que insistia em ser mais veloz do que a habilidade para ordenar as cores na caixa?), o caminhar flutuante (faz-me rir).

Não sei o que aconteceu com a Ana Maria. No ano seguinte, eu me mudei para Sorocaba e não faço ideia de qual era o sobrenome dela (sem chance de encontrá-la no Google ou no Facebook, pois). Lembro que era sempre dela uma das notas mais altas da turma (junto com a minha, que só deixaria de ser CDF absoluta alguns anos depois). Lembro também de ela estar sempre sentada na hora do recreio, com o olhar perdido no infinito, etérea (embora então evidentemente eu sequer soubesse da existência do termo "etérea"). E lembro que, entre uma brincadeira e outra, suada, com os cabelos desgrenhados e as bochechas vermelhas, eu olhava de longe para ela e sentia um pouquinho de inveja daquele ar de princesa que eu nunca consegui imitar por mais de três minutos seguidos.