Emoções adestradas
Cléo Pires perdeu. Há dois meses, mobilizava as atenções do colunista. Hoje, ele só tem olhos e cuidados para um sujeito baixinho, folgado e chegado a excessos, de alegria e tristeza. Na verdade, nos conhecemos desde que ele era bebê mas, há três meses, passamos a morar juntos, só os dois. Em casa é um ótimo companheiro; na rua, faz amizades com facilidade: é um sedutor – e até demais. Seus únicos defeitos, além de uma fome insaciável, são o ronco, altissonante, e um certo, digamos, excesso de salivação. É, ele baba.
Discos, livros e filmes não têm vez esta semana porque há quase um mês ele ficou doente e nossa relação mudou completamente. Remédios na hora certa, exames, idas ao médico. Ficamos mais próximos; e eu, estranhamente, mais dependente dele. Os amigos mais próximos sabem o quanto foi difícil. Agora está tudo bem e resolvi escrever aos meus seis leitores por ter descoberto, talvez da pior forma, pelo sofrimento de um e a preocupação do outro, a profundidade de nosso relacionamento.
Por isso tenho que assumir completamente o Sig – este é o seu nome. Ele tem, pelas nossas contas, 35 anos. Por “nossas” entendam a dos humanos. Divida este número por sete e, dizem, você chega aos cinco anos (e, para ser preciso, sete meses) de idade de um basset hound tricolor, orelhas enormes e olhos caídos com ilimitadas expressividade e capacidade de chantagem emocional. Depois de ter passado 15 dias com um tratador irresponsável, Sig sofreu um horrendo hematoma na orelha (um pequeno vaso arrebentado) e, picado por carrapatos, teve uma queda vertiginosa de glóbulos brancos, o que dificultava a contenção da hemorragia. Antibióticos usados para combater uma infecção que se insinuava detonaram uma gastrite e, por fuçar onde não deve, o rapaz também teve uma crise de bronquite.
Todo o drama que um basset hound é capaz de encenar para conseguir carinho e comida transformou-se, pouco a pouco, em sofrimento real. E aí, fui entendendo a cada dia que é um excesso de pretensão referir-se a eles, os animais de estimação, como “meu cachorro” ou “meu gato”. Ao contrário do que parece, é praticamente impossível decidir quem é dono de quem neste tipo de relação, às vezes mais complexa do que as mantidas exclusivamente entre humanos.
No périplo veterinário motivado pela dificuldade em acertar a forma de ataque às complicações, a primeira das médicas consultadas espantou-se pelo fato de eu tratá-lo “como um cachorro”. Mas é claro. Pois nada pior do que transformar estes animais, maravilhosos justamente por serem animais, em clones de gente, substitutos de filhos ou estepes para a solidão. Não consigo imaginar o bravo Sigmund usando ridículos tênis de cachorro, bonés, coletinhos ou coisa parecida – no máximo, uma charmosa bandana de pano amarrada no pescoço. Pois a graça de se ter um cachorro – ops, de viver ao lado de um cachorro – é precisamente a loucura, nada humana, que eles são capazes de despertar em brincadeiras e conversas que só quem nunca conviveu com um animal pode imaginar como monólogos de pessoas amalucadas.
Como se pode imaginar, um basset hound não é de ficar pegando bolinha aqui e ali. Ele prefere ficar deitado – ainda que Sig não tenha nadinha de sossegado e, freqüentemente, saia em galopes pela casa. Mas ele também provoca delírios verbais alucinados em quem convive com ele. Nascido e registrado Sigmundo Freud, o animal também atende por Sissi, Gordo, Sigão, Sigóide, Sigolino e, mais recentemente, ZigBond, sucedâneo canino do 007 – uma alma de detetive e sedutor que ele conserva por ser um farejador e, também, requisitar o carinho alheio. Pois a cada dez passos na rua, quando não pára para batizar um fradinho ou me fazer de gari, recolhendo em saquinhos plásticos fartos e inebriantes produtos de sua digestão, ele deita-se de bruços e, barriga para cima, espera um carinho de quem quer que seja. Com eu disse, um sedutor.
Há coisa de três anos, foi lançado por aqui um livro fantástico, “Da dificuldade de ser cão”. Seu autor, Roger Grenier, é um velhinho adorável, que foi amigo de Camus e conhece mundo e meio na vida parisiense. Neste livro, que até prêmio ganhou, ele mostra como escritores, filósofos e, é claro, qualquer pessoa com o mínimo de sensibilidade acaba apaixonado por cães, talvez porque eles e outros animais ditos de estimação despertem o que pode haver de melhor em um ser humano: carinho ilimitado, amor incondicional e emoção generosa, sem travas. O livro, diga-se, foi escrito em homenagem a Ulisses, um fiel braco que havia morrido.
É sabido que Carlos Heitor Cony escreveu “Quase memória”, seu magistral retorno à literatura, depois de vinte anos em silêncio, ao velar a prolongada doença de Mila, uma setter lindíssima que acabou morrendo enquanto nascia o livro. E que livro delicioso ao traçar o retrato de um pai amoroso e as dificuldades que temos em aceitar este tipo de amor. Enfim, profundidades despertadas pela energia brincalhona ou amorosa destes animais insubstituíveis.
Como eu não sou, nem de longe, o Cony, só consegui dedicar ao Sig uma modesta coluna – que felizmente é escrita na chave do alívio, depois da tempestade, e interrompida para recolher um cocô inoportuno, coçar-lhe um pouco a barriga ou tê-lo, como os cachorros idealizados, deitado aos meus pés enquanto escrevo. Tenho que terminar porque Sig dá uns ganidos fininhos – prenúncio de um latido fortíssimo, de cão bravo que ele não é – chamando para uma volta na rua, me puxando forte, na modalidade olímpica conhecida como “esqui de cachorro”. Eu, como um bom ser adestrado, nem penso em desobedecer. Vai que ele resolve não dar mais carinho.
terça-feira, 29 de novembro de 2005
Taí, chorei
Este texto lindo do Paulo Roberto Pires é mais um daqueles que eu gostaria de saber escrever...
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