O dia se espatifa: E na outra vida eu quero nascer com este humor:

quinta-feira, 4 de março de 2004

E na outra vida eu quero nascer com este humor:

Efeito Sanfona
Ricardo Freire


Engordar, emagrecer e voltar a engordar, só para poder emagrecer mais uma vez e começar tudo de novo. Esta é a minha sina - minha e de todos os meus colegas de sanfona.

A vida de pessoas como eu é um forró sem fim. A parte do emagrecimento costuma ser trepidante como um xaxado. A parte de voltar a engordar começa cadenciada como um xote, e vai embalando aos pouquinhos, sem que a gente perceba, até virar um baião de Luiz Gonzaga dançado com a luxúria de passos emprestados da lambada.

No auge da esbórnia, todos os caixas de padaria passam a exibir Sonho de Valsa e Ouro Branco em posições de destaque. As barras de cereais recobertas com chocolate começam a dar "oi" para você na saída das farmácias. O Bob's resolve abrir mais e mais filiais no seu caminho, para que você não perca nenhuma oportunidade de calibrar o seu dia com um milk-shake de Ovomaltine.

E mais e mais prateleiras da sua geladeira parecem se dedicar a hospedar um tipo interessante de Chandelle sabor chocolate branco, que chega e desaparece com incrível rapidez. Nham.

O espelho tenta dizer coisas para você - mas você aumenta o som (Dominguinhos? Marinês? A trilha de Eu Tu Eles por Gilberto Gil?) para não ouvir. É quando finalmente as roupas entram em ação. Num motim organizadíssimo, botões se recusam a fechar, zíperes resolvem emperrar e uma série de camisas pelas quais você sempre demonstrou um afeto todo especial simplesmente decidem parar de cair bem.

Chegou a hora em que você tem que fazer alguma coisa. No meu caso, fazer alguma coisa significa ir até o supermercado e comprar uma lata de Farinha Láctea Nestlé.

Ir ao supermercado e comprar uma lata de Farinha Láctea Nestlé é uma espécie de rito de passagem indispensável para o começo de um regime. É o meu jeito de me despedir pessoalmente do maior número possível de carboidratos ao mesmo tempo.

Nessa hora eu aproveito para retomar minha investigação científica - que já dura pelo menos sete regimes - sobre qual seria a consistência mais gostosa da Farinha Láctea. Rala tipo papinha? Cremosa e homogênea? Ou dura e farelenta? Experimento dos três jeitos várias vezes, até não chegar a nenhuma conclusão definitiva, como sempre.

Ao final da experiência científica/rito de passagem eu costumo ficar semidesfalecido no chão da sala (eu nunca uso a cozinha como laboratório porque o chão é muito frio), num estado que os médicos chamariam de "coma" - mas que eu, com a autoridade de quem já passou por isso várias vezes, chamaria de estado de "não coma!".

Só assim, num estado de "não coma!" induzido, é que eu consigo começar o regime e retomar o meu ciclo vital de emagrecer para engordar. A partir de agora, os alimentos deixam de ser chamados pelos seus nomes-fantasia e voltam a ser referidos pela sua substância ativa - mais ou menos como acontece com os medicamentos genéricos. Bife vira "proteína", salada vira "fibra" e batata vira "só ano que vem".

Coca Light deixa de ser o melhor acompanhamento para brigadeiros e passa a desempenhar a função dos próprios brigadeiros. Gelatinas com aspartame repentinamente revelam possuir um sabor tão especial, que você não entende como Emannuel Bassoleil não serve um panaché delas no Roanne. Almoços e jantares são consumidos com sofreguidão para chegar logo a melhor parte: o papaia.

Prevejo uma longa temporada de sonhos eróticos - com o creme de mascarpone ao chocolate do Gero, o doce de ovos moles com canela do Antiquarius, o souflé de goiabada do Carlota e, principalmente, o Chandelle sabor chocolate branco do Pão de Açúcar - que me farão acordar suado e com o coração acelerado.

Para esses momentos, terei a geladeira repleta da única droga que pode curar minha síndrome de abstinência: melancia. Devidamente cortadinha pela empregada e armazenada em tupperwares de todos os tamanhos.

Além de não chegar perto da máquina de milk-shake de Ovomaltine do Bob's, prometo manter distância das balanças. Simplesmente me imaginar subindo numa balança já provoca em mim os mais profundos sentimentos de pesar.

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